quarta-feira, janeiro 30

escritos de loucura normal


Carta aos Médicos-chefes dos Manicómios

Senhores,
As leis e os costumes concedem-vos o direito de medir o espírito. Essa jurisdição soberana e temível é exercida com vossa razão. Deixai-nos rir. A credulidade dos povos civilizados, dos sábios, dos governos, adorna a psiquiatria de não sei que luzes sobrenaturais. O processo da vossa profissão já recebeu seu veredicto. Não pretendemos discutir aqui o valor da vossa ciência nem a duvidosa existência das doenças mentais. Mas para cada cem supostas patogenias nas quais se desencadeia a confusão da matéria e do espírito, para cada cem classificações das quais as mais vagas ainda são as mais aproveitáveis, quantas são as tentativas nobres de chegar ao mundo cerebral onde vivem tantos dos vossos prisioneiros? Quantos, por exemplo, acham que o sonho do demente precoce, as imagens pelas quais ele é possuído, são algo mais que uma salada de palavras?
Não nos surpreendemos com vosso despreparo diante de uma tarefa para a qual só existem uns poucos predestinados. No entanto rebelamos-nos contra o direito concedido a homens – limitados ou não – de sacramentar com o encarceramento perpétuo as suas investigações no domínio do espírito.
E que encarceramento! Sabe-se – não se sabe o suficiente – que os hospícios, longe de serem asilos, são pavorosos cárceres onde os detentos fornecem uma mão-de-obra gratuita e cómoda, onde os suplícios são a regra, e isso é tolerado pelos senhores. O hospício de alienados, sob o manto da ciência e da justiça, é comparável à caserna, à prisão, à masmorra. Não levantaremos aqui a questão dos internamentos  arbitrários, para vos poupar o trabalho dos desmentidos fáceis. Afirmamos que uma grande parte dos vossos pensionistas, perfeitamente loucos segundo a definição oficial, estão, eles também, arbitrariamente internados. Não admitimos que se freie o livre desenvolvimento de um delírio, tão legítimo e lógico quanto qualquer outra sequência de ideias e actos humanos. A repressão dos actos anti-sociais é tão ilusória quanto inaceitável no seu fundamento. Todos os actos individuais são anti-sociais. Os loucos são as vítimas individuais por excelência da ditadura social; em nome dessa individualidade intrínseca ao homem, exigimos que sejam soltos esses encarcerados da sensibilidade, pois não está ao alcance das leis prender todos os homens que pensam e agem.
Sem insistir no carácter perfeitamente genial das manifestações de certos loucos, na medida da nossa capacidade de avaliá-las, afirmamos a legitimidade absoluta da sua concepção de realidade e de todos os actos que dela decorrem.
Que tudo isso seja lembrado amanhã pela manhã, na hora da visita, quando tentarem conversar sem diccionário com esses homens sobre os quais, reconheçam, os senhores só têm a superioridade da força.
(Escritos de Antonin Artaud)

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