terça-feira, outubro 23

já agora...




Ostensivo sol não preciso do teu calor - afasta-te!
Tu iluminas só as superfícies, eu penetro as superfícies e as profundidades.

Terra!Terra! pareces buscar algo nas minhas mãos,
Diz, velha poupa, o que é que queres?

Homem ou mulher, podia dizer-te quanto gosto de ti, mas não posso,
Podia dizer-te o que há em mim e em ti, mas não posso,
Podia dizer-te do meu desejo, desse pulsar dos meus dias e das minhas noites.

Ouve: eu não dou conferências nem pequenas caridades,
Quando dou é por inteiro que me dou.

Tu aí, ó impotente, com os joelhos trémulos,
Abre os lábios enrugados para que te dê forças,
Estende as palmas das mãos e abre os bolsos,
Eu não serei recusado, imponho-me, tenho tanto armazenado, tanto para dar,
E ofereço tudo o que tenho.

Não pergunto quem és, para mim isso não é importante,
Não podes fazer nada, não podes ser mais do que aquilo que te dou.

Inclino-me perante quem moureja nos campos de algodão e perante quem
limpa as latrinas,
Na sua face direita deixo um beijo familiar,
E do fundo da minha alma juro que jamais o renegarei.

Nas mulheres que concebem concebo crianças mais robustas e aptas,
(Neste dia lanço a semente de repúblicas muito mais arrogantes).

Àquele que morre acudo à sua porta e rodo a maçaneta,
Atiro os cobertores para os pés da cama,
Despeço o médico e o padre.

Agarro o homem que desfalece e levanto-o com irresistível vontade,
ó desesperado, aqui tens a minha nuca,
Por Deus, não te vás abaixo! apoia-te a mim com todo o peso.

Dilato-te com um sopro tremendo, dou-te alento,
Encho todos os quartos da casa com um exército armado,
Meus amantes, vós que do túmulo me enganam.

Dorme ... eu e eles velaremos toda a noite,
Nem dúvida nem morte ousarão tocar-te com um dedo,
Abracei-te e a partir de agora pertences-me,
E quando pela manhã te levantares verás que é verdade o que te digo.

Walt Whitman
(canto de mim mesmo)
tradução de José Agostinho Baptista

1 comentário:

Anónimo disse...

Francamente tremendo...
É bom encontrar assim uma parte de um poema/livro onde não voltaria a pegar, talvez para sempre...

Precisamos do olho do artista - ou do apreciador - para destacar uma parte... ou a obra perde-se no todo....
Cumprimentos

Terpsichore d'a ilha dos amores (esta coisa não está a dar o nome :))